A Cosmogênese segundo Blavatsky
- Leandro Lyra
- 14 de set. de 2023
- 30 min de leitura
Atualizado: 14 de nov. de 2024
Após explorarmos as sagradas escrituras hindus e as escolas filosóficas da Índia, os Dārśanas, que nos forneceram uma base essencial para compreender alguns dos conceitos e termos usados por Blavatsky em sua obra A Doutrina Secreta, estamos agora prontos para adentrar o tema da Cosmogênese segundo Blavatsky.
Convido você a embarcar nesta jornada fascinante, onde vamos explorar como Blavatsky integra conhecimentos de diversas tradições espirituais — como o Hinduísmo, o Budismo Tibetano, o Esoterismo Ocidental e outras doutrinas antigas — para revelar os mistérios da criação cósmica.

Helena Petrovna Blavatsky, nascida em 1831 no Império Russo (atualmente Ucrânia), foi uma figura de personalidade complexa, reconhecida por suas habilidades psíquicas extraordinárias desde a infância. Após um casamento fracassado, ela embarcou em uma jornada pelo mundo, em busca de conhecimento filosófico, espiritual e esotérico. Sua busca a levou ao Oriente, onde alegou ter encontrado mestres de sabedoria e recebido treinamento especializado para desenvolver seus poderes paranormais de maneira controlada.
Em 1873, Blavatsky iniciou sua carreira pública nos Estados Unidos, demonstrando seus dons psíquicos para um público cético, mas ao mesmo tempo fascinado. Juntamente com Henry Olcott, ela fundou a Sociedade Teosófica e publicou sua primeira obra de grande impacto, "Ísis sem Véu", em 1877.
"Ísis sem Véu" causou um verdadeiro alvoroço quando foi lançada, oferecendo uma análise aprofundada dos mistérios da ciência e das religiões antigas e modernas, em um total de mais de 1200 páginas. Escrito apenas dois anos após a fundação da Sociedade Teosófica em Nova York. Com sua abordagem pioneira e investigativa, "Ísis sem Véu" não só ajudou a despertar um crescente interesse por filosofias esotéricas e místicas, como também se estabeleceu como um marco na literatura ocultista, influenciando pensadores e estudiosos até os dias de hoje. A obra continua sendo uma excelente introdução ao ocultismo.
Após um incidente que abalou sua reputação internacional, Blavatsky retornou à Europa, onde continuou a escrever e promover a Teosofia. Seus últimos anos foram difíceis, mas ela conseguiu concluir sua obra mais importante: "A Doutrina Secreta".
Publicada pela primeira vez em 1888, "A Doutrina Secreta" foi dividida em dois volumes, com um terceiro volume adicionado posteriormente por seus seguidores. A obra é considerada a principal contribuição de Blavatsky para a Teosofia e continua sendo um texto fundamental para os estudiosos do ocultismo e da filosofia esotérica.
A primeira edição em português de "A Doutrina Secreta" foi lançada no Brasil em 1973, pela Editora Pensamento, em seis volumes, com tradução de Raymundo Mendes Sobral. Os títulos dessa edição são:
• Volume I: Cosmogênese
• Volume II: Simbolismo Arcaico Universal
• Volume III: Antropogênese
• Volume IV: O Simbolismo Arcaico das Religiões do Mundo e da Ciência
• Volume V: Ciência, Religião e Filosofia
• Volume VI: Objeto dos Mistérios e Prática da Filosofia Oculta
O texto de "A Doutrina Secreta" foi concebido como um extenso comentário sobre passagens de um livro desconhecido para os ocidentais, que Blavatsky alegava ter recebido e estudado durante sua estada no Tibete. Esse livro é conhecido como "O Livro de Dzyan".
Diz-se que "O Livro de Dzyan" foi escrito em um idioma igualmente enigmático, o senzar, e tratava-se de uma compilação de uma obra tântrica, de grande antiguidade, chamada "Os Livros de Kiu-te", que circulava entre os monges tibetanos.
Blavatsky afirmava que grande parte de "A Doutrina Secreta" foi escrita por meio de seus dons psíquicos. Ela assegurava que uma parte significativa da obra foi ditada por mestres secretos, com os quais ela se comunicava através de um processo que, segundo ela, não era mediúnico (no sentido de incorporação ou psicografia), mas sim por intermédio de clarividência e clariaudiência. Explicaremos mais adiante essa distinção, que foi enfatizada pela própria Blavatsky.
Blavatsky também postula que, para compreender a cosmogênese, é necessário dominar três proposições fundamentais, apresentadas em "A Doutrina Secreta". Esses três postulados são:
A existência de um Princípio Onipresente (Causa Infinita, Absoluto ou Raiz Sem Raiz), eterno, sem limites, imutável e incognoscível;
A eternidade do universo, que se manifesta em ciclos de atividade e inatividade, repetindo-se sem início nem fim;
A identidade de todas as almas com a alma universal, sendo esta última um reflexo da raiz desconhecida.
Esses conceitos são fundamentais e interdependentes, permeando todo o sistema de pensamento ao qual a atenção do leitor será conduzida.
Comecemos com a primeira das proposições.
A existência de um Princípio Onipresente (Causa Infinita, Absoluto ou Raiz Sem Raiz), eterno, sem limites, imutável e incognoscível;
Blavatsky afirma que a realidade fundamental subjacente a tudo o que existe é um Princípio Único, do qual tudo se origina. Esse Princípio Único, eterno, infinito e imutável, é a base de toda a criação. O Princípio Uno é equivalente ao conceito de Parabrahman no hinduísmo e ao de Ain Soph na cabala.
É importante notar que, para Blavatsky, assim como para o hinduísmo e a cabala, o Princípio Uno não é o Deus criador e antropomórfico das religiões monoteístas. Sendo Absoluto e Não-Manifestado, ele não pode criar no sentido tradicional. Segundo a autora, o que as religiões consideram como Deus "criador" é, na verdade, um coletivo de seres intra-cósmicos, emanados do Princípio Uno, que atuam sobre a matéria, ordenando-a e dando-lhe forma. Blavatsky se refere a esses seres divinos como Dhyan Chohans.
Os Dhyan Chohans são mencionados no livro do Gênesis e na cabala judaica sob o nome de Elohim. Elohim é apenas uma das muitas palavras traduzidas genericamente como "Deus". Essas palavras representam diferentes formas ou aspectos da manifestação da divindade. Por exemplo, Elohim pode ser traduzido como Deuses e Deusas. Outras palavras que se referem a diferentes aspectos da divindade incluem Adonai, El Shaddai, entre outras.
O Princípio Uno desdobra-se para criar e expandir-se em múltiplas dimensões.
Este Princípio Uno, também conhecido como a Deidade Una ou Parabrahman, é simultaneamente "Existência Absoluta" e "Não-Existência Absoluta". Ele transcende qualquer dualidade, sendo o princípio originário de toda a criação.
Por nossa consciência limitada, esse Uno pode ser percebido como o "Espaço Abstrato Absoluto", uma realidade que vai além de qualquer concepção material ou concreta, sendo algo que não pode ser plenamente compreendido pelas categorias da experiência humana.
O prefixo Para indica aquilo que "vem antes". Assim, Parabrahman é o estado do Absoluto anterior à manifestação, ou seja, o Imanifestado. Esse é o princípio primordial, além do qual nada existe.
A cosmogênese é descrita como o processo em que a manifestação começa a partir da Deidade Una, o Absoluto, o Imanifestado. Quando o Absoluto se manifesta, ele assume o nome de Brahman.
Derivado da raiz sânscrita Brih, que significa "crescer" ou "expandir", Brahman é o Absoluto em Manifestação. Durante esse processo, Brahman não é ainda o Deus Criador, mas sim o próprio Absoluto no processo de manifestação, permanecendo essencialmente o mesmo, apesar de sua manifestação.
Este processo de manifestação ocorre dentro de um grande ciclo cósmico denominado Mahāmanvantara, que é o período em que o Universo se manifesta. Durante o Mahāmanvantara, o Cosmos torna-se perceptível.
Entre os períodos de manifestação de um Universo, existe um intervalo de repouso chamado Mahāpralaya. O prefixo Mahā significa "grande", e tanto o Mahāmanvantara quanto o Mahāpralaya representam os dois grandes ciclos do Cosmos: o Grande Dia Cósmico e a Grande Noite Cósmica, respectivamente.
Brahman é o Absoluto em Manifestação durante o Mahāmanvantara, o período em que o Universo se torna perceptível. Parabrahman e Brahman, apesar de representarem aspectos diferentes, são na verdade a mesma essência: Parabrahman está no estado de imanifestação, enquanto Brahman permanece como o Absoluto durante a manifestação, contendo toda a criação dentro de si.
Embora a manifestação ocorra, o Absoluto permanece inalterado, seja durante o Mahāmanvantara ou o Mahāpralaya, mantendo-se como a realidade última e indiferenciada. Por isso, o Absoluto não é considerado a divindade criadora.
A divindade criadora é, na tradição hindu, Brahmā.
É importante notar que Brahmā não deve ser confundido com Brahman. Enquanto Brahman é o Absoluto impessoal, além de toda distinção e concepção, Brahmā é a manifestação do Criador que emerge a partir desse Absoluto.
Brahman é a forma neutra de Brahmā na gramática sânscrita, e a única diferença entre os dois termos reside no acréscimo de um "n" no final.
Brahmā se manifesta a partir de Parabrahman (que passa a ser denominado Brahman), e com isso inicia-se o Mahāmanvantara, um grande ciclo cósmico que dura toda a vida de Brahmā. Esse ciclo marca o início da manifestação do Universo.
Brahmā, a Divindade Criadora e o Primeiro Logos, desdobra-se em dois outros Logos: Viṣṇu (ou Vishnu) e Śiva (ou Shiva). Juntos, Brahmā (Criador), Viṣṇu (Conservador) e Śiva (Destruidor) formam a Trindade Hindu (ou Trimūrti), representando os três aspectos fundamentais da criação cósmica: criação, preservação e destruição.

Essa ideia encontra uma notável analogia na Cabala, onde o Absoluto, conhecido como Ain Soph, é a fonte primordial de toda a criação. O Ain Soph, que pode ser compreendido como o Infinito sem Limites, é o princípio transcendente que precede toda a manifestação, sendo incognoscível e além de qualquer definição ou limite. A partir desse estado absoluto, que é simultaneamente "não-existência" e "existência infinita", surge a primeira esfera da Árvore da Vida, chamada Kether.
Kether ocupa a posição central na Árvore da Vida, sendo o ponto de origem e a primeira manifestação da luz divina que emerge do Ain Soph. Localizado na coluna do meio da Árvore, Kether representa uma força neutra e equilibrada, um princípio de unidade essencial que contém, em sua essência, todas as possibilidades da criação. A partir de Kether, o fluxo criativo desdobra-se em duas outras esferas, Chokmah e Binah, que, por sua vez, começam a formar as bases da manifestação.
Chokmah, localizada na coluna da direita da Árvore, é associada à força positiva, à sabedoria pura e à criatividade ativa. Representa o princípio masculino da criação, a energia dinâmica que inicia o movimento criativo no Universo. Em contraste, Binah, que ocupa a coluna da esquerda, está associada à força negativa, à compreensão e à inteligência estruturante. Ela representa o princípio feminino da criação, a energia receptiva que organiza e dá forma ao que é concebido pela força criativa de Chokmah.
Assim, na estrutura da Árvore da Vida, essas três esferas iniciais — Kether, Chokmah e Binah — representam as três forças fundamentais da criação: uma neutra, que é o princípio de equilíbrio e unidade (Kether); uma positiva, que impulsiona a criação através da sabedoria e da ação (Chokmah); e uma negativa, que oferece a forma e a estrutura necessárias para dar realidade à criação (Binah).
Juntas, essas forças geram o desdobramento do Universo, onde a interação entre os princípios masculino e feminino, ativo e receptivo, positivo e negativo, cria a dinâmica cósmica que possibilita a manifestação de toda a realidade. Este modelo cabalístico é uma representação simbólica da maneira como as energias primordiais se combinam para dar origem ao mundo material e espiritual.

A ideia da Trindade Criadora é um conceito recorrente em diversas tradições espirituais ao longo da história, refletindo a presença de três princípios fundamentais que se combinam para gerar e sustentar a criação. No Egito Antigo, encontramos uma tríade divina formada por Osíris, Ísis e Hórus. De maneira similar, no Cristianismo, a Trindade é expressa no Pai, Filho e Espírito Santo.

Embora o conceito de Trindade Criadora esteja presente em diversas tradições espirituais, as interpretações e expressões dessas trindades variam significativamente. No Cristianismo, por exemplo, a figura da Virgem Maria Cósmica, embora não faça parte oficialmente da Trindade, desempenha um papel semelhante ao de Ísis, representando a energia feminina e receptiva em relação à energia criadora do Pai/Osíris. Por outro lado, o Espírito Santo, embora seja parte integrante da Trindade cristã junto ao Pai e ao Filho, assume um papel distinto, com um significado associado, mas diferente, dentro dessa dinâmica cósmica.
Já no contexto do Hinduísmo, a Trindade Criadora é formada por Brahmā, Viṣṇu e Śiva, três figuras masculinas que exercem funções essenciais na criação, preservação e destruição do cosmos. Contudo, essas divindades estão sempre associadas a suas respectivas esposas, que representam as energias femininas complementares que equilibram e sustentam a ação cósmica. Sarasvatī, esposa de Brahmā, simboliza a sabedoria e o conhecimento; Lakṣmī, esposa de Viṣṇu, personifica a prosperidade e a abundância; e Pārvatī, esposa de Śiva, representa a energia receptiva e transformadora, além de ser mãe de Ganeśa e Kārtikeya.
Por enquanto, vamos focar na ideia da Trindade Criadora, abordando-a de forma clara e simplificada, dentro da perspectiva das três forças fundamentais que atuam no processo de criação. Essas forças se manifestam de maneira distinta, mas interdependente, e são responsáveis pela dinâmica do cosmos. Ao longo deste desenvolvimento, veremos como essas três energias se combinam para dar origem à realidade em suas diversas manifestações.
Antes de avançarmos para a manifestação de Brahmā, que emerge do Absoluto (Brahman) e se torna parte da Trindade Criadora, é essencial retornarmos ao Uno, ao Absoluto, ao Brahman.
No início de sua obra "A Doutrina Secreta", Blavatsky faz referência a um poema do Rig Veda, um dos quatro Vedas que constituem as sagradas escrituras hindus. Esse poema descreve o processo da criação do universo, revelando o fluxo originário que se desdobra a partir do Absoluto e manifesta a totalidade da realidade.
Não existia nada: nem o claro céu, Nem ao alto a imensa abóbada celeste.
O que tudo encerrava, tudo abrigava, E tudo encobria, que era? Era das águas
O abismo insondável? Não existia a morte, Mas nada havia imortal. E separação
Também não existia entre a noite e o dia.
Só o Uno respirava em Si mesmo e sem ar:
Não existia nada, senão ELE. E ali
Reinavam as trevas, tudo se escondia
Na escuridão profunda: oceano sem luz.
O germe, que dormitava em seu casulo,
Desperta ao influxo do ardente calor E faz então brotar a Natureza una.
Quem sabe o segredo? Quem o revelou?
De onde, de onde veio a criação multiforme?
Os Deuses só mais tarde à vida surgiram.
De onde esta criação imensa? Quem o sabe?
Por ação ou omissão de Sua Vontade?
O Sublime Vidente, no alto dos céus,
O segredo conhece.
Talvez nem ele.
Profundando a eternidade.
..Inda mesmo antes
De lançados os alicerces do mundo,
Tu eras. E quando o fogo subterrâneo
Romper sua prisão, destruindo a estrutura,
Oh! ainda serás Tu como eras antes.
Também quando o tempo já não existir
Nenhuma transformação conhecerás,
Mente infinita, divina Eternidade!
Rig Veda
Brahman é a Realidade definitiva, tanto transcendente quanto imanente, a existência infinita e absoluta, abrangendo a totalidade do que é, foi e será. Não deve ser confundido com um Deus no sentido monoteísta, pois Brahman não possui nenhuma característica limitante — nem mesmo aquelas que definem o ser ou o não-ser. Essa natureza além de qualquer limitação é refletida na própria língua sânscrita, onde a palavra Brahman é de gênero neutro, em contraste com as palavras masculinas ou femininas que, em geral, são usadas para descrever deuses ou figuras divinas no contexto hindu.
Os Upaniṣads oferecem descrições profundas e multifacetadas sobre Brahman, a Realidade Suprema. Esses textos sagrados do hinduísmo não apenas exploram a relação entre o Ātman (a alma individual) e o Brahman, mas também fornecem ensinamentos sobre o caminho da liberação espiritual (mokṣa) e a realização da unidade entre ambos.
Esses textos sagrados têm gerado diversas interpretações ao longo do tempo, e uma das principais correntes filosóficas derivadas deles é o Vedānta, uma das seis escolas filosóficas ou Darśanas do hinduísmo. O Vedānta segue uma linha não-dualista (advaita), afirmando que existe apenas uma única Realidade (Brahman), que, embora pareça múltipla para a mente não iluminada, revela-se como singular (eka) e não-dual (advaya) quando se alcança a verdadeira compreensão.
Para um estudo mais aprofundado sobre os Upaniṣads, consulte o texto sobre as escrituras hindus. Para entender melhor o Vedānta e as escolas filosóficas hindus, veja o texto sobre as escolas de filosofia do hinduísmo.
Agora, vamos explorar mais alguns exemplos de como os Upaniṣads tentam expressar o inefável, aquilo que não pode ser descrito — a "Realidade" (Brahman):
Kaṭhopaniṣad, I:2.18
न जायते मृयते वा िवपिश्चन् नायं कु तिश्चन्न बभूव किश्चत् । अजो िनत्यः शाश्वतोऽयं पुराणो न हन्यते हन्यमाने शरीरे ॥
na jāyate mṛyate vā vipaścin nāyaṁ kutaścinna babhūva kaścit | ajo nityaḥ śāśvato’yaṁ purāṇo na hanyate hanyamāne śarīre ||
"O Ilimitado, que é Todo-o-Conhecimento, não nasceu nem morrerá. Estando além de causa e efeito, é imutável, constante e eterno. Ele não perece quando o corpo se extingue".
Īśopaniṣad, 5
तदेजित तन्नैजित तद्दुरे तद्विन्तके । तदन्तरस्य सवर्स्य तदु सवर्स्यास्य बाह्यतः ॥
tadejati tannaijati taddūre tadvantike | tadantarasya sarvasya tadu sarvasyāsya bāhyataḥ ||
"Esse [Brahman] parece mover-se, mas está sempre quieto. Parece estar longe, mas está sempre perto. Está em tudo, e a tudo transcende".
Muṇḍakopaniṣad, I:1.9
यः सवर्ज्ञः सर्वविद् यस्य ज्ञानमयं तपः । तस्मादेतद् ब्रह्म नाम रूपमन्नं च जायते ॥
yaḥ sarvajñaḥ sarvavid yasya jñānamayaṁ tapaḥ |
tasmādetad brahma nāma rūpamannaṁ ca jāyate ||
"Este Ilimitado Brahman é todo o conhecimento: do grande e do pequeno, de tudo o que é manifestado. Seu esforço é puro conhecimento. Deste Ser nasceram a natureza, os nomes e formas e o alimento".
Chāndogyopaniṣad, III:14.1
सवर्म् खिल्वदम् ब्रह्म ॥
sarvam khalvidam brahma ||
"Tudo é, de fato, Brahman, o Ilimitado".
Amṛtabindūpaniṣad, 6
नैव चिन्त्यं न चािचन्त्यं न चिन्त्यं चिन्त्यमेव च । पक्षपातिविनमुर्क्तं ब्रह्म सम्पद्यते तदा ॥
naiva cintyaṁ na cācintyaṁ na cintyaṁ cintyameva ca | pakṣapātavinirmuktaṁ brahma sampadyate tadā ||
"[Brahman] não é concebível [pois não é um objeto]; nem é inconcebível [pois não cabe no pensar]. Embora não possa ser objeto do pensar, deve-se meditar nele [como a fonte da Plenitude]. O Ser, livre de conceitos, é assim alcançado [conhecido]".
Brahman também é descrito como saccidānanda, um termo sânscrito que se traduz como a tríade essencial de realidade (sat), consciência (cit) e felicidade ou êxtase (ānanda). Esses três aspectos representam as qualidades fundamentais de Brahman: sat refere-se à existência eterna e incondicional, cit à consciência pura e infinita, e ānanda à beatitude ou felicidade suprema, que transcende qualquer prazer mundano. Juntos, esses atributos descrevem a natureza imutável e abrangente de Brahman, que é ao mesmo tempo a essência da realidade, da percepção consciente e da felicidade universal.
Brahman não pode ser compreendido pela mente ou pelo intelecto, pois ambos pertencem a uma dimensão dualista e limitada. A mente, que opera no domínio da separatividade e da dualidade, não tem a capacidade de abarcar a totalidade de Brahman, que transcende as dualidades do ser e do não-ser. A realidade de Brahman é mais sutil e, portanto, só pode ser experimentada diretamente, especialmente por meio de estados de consciência elevados, como o Samādhi.
Samādhi é um estado de hiperconsciência e êxtase profunda, alcançado pela supressão das ondas mentais e pela cessação da agitação mental. Esse estado de profunda meditação, onde a mente se dissolve na unidade, é o objetivo central do Yoga, uma das principais escolas filosóficas do hinduísmo, conforme descrito no primeiro sūtra de Patañjali. O Samādhi não é um estado único, mas sim um processo de múltiplos níveis, cada um representando um grau mais profundo de transcendência, culminando na união direta com o Brahman. Para entender melhor o Yoga e as etapas necessárias para alcançar o Samādhi, consulte o texto sobre os Darśanas do hinduísmo.
A entidade viva, imersa em avidyā (ignorância), vê-se separada de Brahman devido à identificação com o aham (ego) e a mamata (sensação de posse ou egoísmo). Esses conceitos limitantes se dissipam à medida que o praticante adquire jñāna (conhecimento ou gnose), que promove a vidyā (sabedoria ou ciência) e conduz à mokṣa (liberação espiritual). A mokṣa elimina o saṁsāra, o ciclo contínuo de nascimento, morte e renascimento, permitindo a união com a Realidade Suprema.
Segundo a filosofia Vedānta, Brahman é absoluto e imutável. Não há nada superior ou inferior a Brahman, e, portanto, conceitos como Parabrahman nem sempre são utilizados dentro dessa escola. No entanto, o conceito de Parabrahman é empregado na Doutrina Secreta de Blavatsky para se referir ao "Absoluto" no estado de imanifestação durante o Mahāpralaya, o que é conhecido como a "Grande Noite Cósmica" — o intervalo entre os ciclos de manifestação do Universo.
A Cosmogênese tem início com o surgimento do princípio criador, Brahmā, originado da Deidade Una (Brahman), na aurora do Mahāmanvantara, o "Grande Dia Cósmico". Neste momento, as leis universais começam a atuar e o ciclo de manifestação se inicia. O Mahāmanvantara pode ser entendido como a "vida" de Brahmā, o período durante o qual ocorre a manifestação cósmica.
Durante a vida de Brahmā (Mahāmanvantara), diferentes ciclos menores de manifestação e imanifestação se sucedem, conhecidos como os dias e noites de Brahmā. Esses ciclos menores não devem ser confundidos com os grandes ciclos cósmicos do Mahāmanvantara e do Mahāpralaya, que representam os grandes "dias" e "noites" cósmicos, correspondendo às grandes eras ou vidas do próprio Brahman.
Como já discutido, o prefixo "Mahā" significa "grande", indicando a magnitude dos ciclos que abrangem a totalidade da criação. Ao remover o prefixo, obtemos os termos que designam os ciclos menores — os Manvantaras (dias de Brahmā) e os Pralayas (noites de Brahmā). Esses termos também são usados de forma mais ampla para se referir aos ciclos de manifestação e imanifestação que ocorrem em escalas menores, como no caso de galáxias, sistemas estelares, planetas, e outras formas de existência no cosmos.
Cada dia de Brahmā (Manvantara) tem a duração de 8.640.000.000 anos humanos, o que significa que, ao final de um ciclo de 24 horas cósmicas, o tempo se expande para além de qualquer conceito humano, alcançando uma dimensão cósmica que desafia a nossa compreensão. O tempo cósmico, portanto, transcende a escala da experiência humana, revelando-se em uma vastidão inefável.
Um ano de Brahmā é composto por 360 dias de Brahmā (Manvantaras) e 360 noites de Brahmā (Pralayas), totalizando 720 unidades de tempo cósmico. Cada Manvantara, ou "dia de Brahmā", tem a duração de 311.040.000 anos humanos, durante os quais o universo passa pelos processos de criação, preservação e desenvolvimento.
Após cada Manvantara, segue-se um Pralaya, ou "noite cósmica", que é um período de imanifestação, quando o universo retorna ao estado de repouso. O Pralaya tem a mesma duração de 311.040.000 anos humanos e marca a dissolução temporária de toda a criação.
Assim, um ano de Brahmā, que é composto por 360 Manvantaras e 360 Pralayas, corresponde a um período de 3.110.400.000.000 anos humanos.
Ao final de sua vasta existência, que equivale a 100 anos de Brahmā, ele se recolhe em Brahman, o Princípio Absoluto, e inicia-se o Mahāpralaya, a "Grande Dissolução". Durante o Mahāpralaya, a criação é desfeita, e todas as formas se fundem novamente no inefável Brahman, aguardando o próximo ciclo cósmico. Quando Brahmā renasce, começa um novo Mahāmanvantara, o Grande Dia Cósmico, reiniciando o ciclo de manifestação e dissolução do universo.
A seguir, apresentamos uma tabela dos ciclos descritos em "A Doutrina Secreta", publicada na revista The Theosophist em novembro de 1885. Nesta seção, a explicação será ampliada e detalhada, proporcionando uma compreensão mais profunda dos conceitos envolvidos.
Ciclos | Duração em Anos Humanos |
Mahā-Manvantara | 311.040.000.000.000 anos |
Mahā-Pralaya | 311.040.000.000.000 anos |
Sandhis (intervalos entre os reinados dos Manus) ou 6 Mahā-Yugas | 25.920.000 anos |
Reinado de 14 Manus ou 994 Mahā-Yugas | 4.294.080.000 anos |
Manvantara (Período de Manu) ou 71 Mahâ-Yugas | 306.720.000 anos |
360 Dias e Noites de Brahmā ou 1 ano de Brahmā | 3.110.400.000.000 anos |
1 Dia e 1 Noite de Brahmā | 8.640.000.000 anos |
1000 Mahā-Yugas, 1 Kalpa ou 1 dia de Brahman | 4.320.000.000 anos |
Mahā-Yuga (Soma das 4 Yugas) | 4.320.000 anos |
Krita ou Satya Yuga | 1.728.000 anos |
Treta Yuga | 1.296.000 anos |
Dvapara Yuga | 864.000 anos |
Kali Yuga | 432.000 anos |
Pralaya Universal | 100 anos de Brahman |
Pralaya Solar | 2.160.000 anos |
Pralaya Planetária | 7.680.000 anos |
Pralaya Racial | 1.728.000 anos |
Pralaya Humano (Morte) | Variável |
365 Dias Humanos | 1 Ano Humano |
Esta tabela resume de maneira clara as durações dos diversos ciclos apresentados em "A Doutrina Secreta", destacando os períodos que formam a cosmogênese, os ciclos cósmicos e as etapas da evolução universal.
Embora exploraremos este tema com mais profundidade mais adiante, ao abordá-lo brevemente, já podemos ter um vislumbre da grandiosidade e da profundidade dos ciclos cósmicos, conforme descritos pela filosofia hindu e pela Teosofia.
Com isso, chegamos à compreensão do segundo postulado considerado por Blavatsky como essencial para entender "A Doutrina Secreta":
A eternidade do universo, que se manifesta através de ciclos de atividade e inatividade, repetindo-se em sucessão infinita, sem início nem fim.
Agora, vamos abordar o terceiro postulado:
A identidade de todas as almas com a alma universal, sendo esta última um reflexo da raiz desconhecida.
É importante compreender que a palavra frequentemente traduzida como "alma" na verdade se refere ao Ātman, o Ser. Essa tradução pode gerar equívocos devido à forma como entendemos o conceito de "alma”. A alma, como entendida no Ocidente, é uma substância intermediária.
Ātman não se refere a esse princípio intermediário, mas ao Ser, o sétimo princípio no ser humano completo. Uma tradução mais precisa seria "espírito", embora isso ainda pudesse gerar confusão. Uma tradução mais adequada seria: "A Identidade de todos os Seres com o Ser Universal."
Para explicar melhor esse conceito, vamos recorrer ao Sāmkhya, outro importante Dārśanas do Hinduísmo, antes de retornarmos à Doutrina Secreta dos Iniciados.
O Sāmkhya adota uma abordagem dualista, contrastando com o Vedānta, ao conceber a natureza como resultado da interação de duas entidades fundamentais: Purusha (o "Espírito") e Prakṛti (a "Matéria").
Prakṛti (Prakriti) é a matriz ou fonte de todos os fenômenos possíveis.
Purusha é a testemunha ou o observador desses fenômenos.
Purusha é uma entidade que, em muitos aspectos, se assemelha ao conceito de Ātman Universal, ou Brahman, do Vedānta. Assim como Brahman é a essência cósmica, imutável e transcendental que permeia e sustenta todo o universo, Purusha é o princípio eterno que testemunha, mas não se envolve, nos fenômenos do mundo material. Ele é a fonte da consciência universal, a realidade última que está além da manifestação.
Por outro lado, o Purusha também se refere ao Ātman, o "eu profundo", o Ser que é o sétimo princípio do ser humano no contexto da Teosofia. Nesse sentido, Purusha corresponde ao Ātman em sua dimensão pessoal e singular, aquela centelha divina que reside no interior de cada ser, mas que, por sua natureza, é a mesma que o Ātman Universal ou Brahman.
Purusha, portanto, é o princípio que conecta todos os seres a uma única fonte, sendo ao mesmo tempo um e múltiplo.
O mundo manifesto, segundo o Sāṃkhya, é o resultado da união entre dois princípios fundamentais: um essencial, Purusha, que corresponde ao Céu, ao Yang no taoísmo, e outro substancial, Prakṛti, que representa a Terra, o Yin.
O Cosmos segue um movimento cíclico, que abrange seu nascimento, desenvolvimento e eventual encerramento. Essa visão cíclica da manifestação reflete a natureza do mundo condicionado, em que o ciclo se desenrola tanto de forma descendente quanto ascendente. Esse processo ocorre em níveis extremamente sutis, onde a energia incondicionada se concentra em formas muito finas de matéria.
Nesse movimento cíclico do Cosmos, há uma tendência de afastamento de sua origem espiritual, à medida que se densifica e se materializa progressivamente. Esse processo cria a ilusão de separação e distanciamento da unidade primordial.
Purusha, embora seja único em sua essência, nesse processo se manifesta também como múltiplo. Ele é um na sua dimensão original, mas se apresenta como múltiplos quando suas "partes" se tornam corpos na Prakṛti.
Esta multiplicidade, no entanto, é uma ilusão aparente, pois, em sua essência mais profunda, Purusha é uno, tal como o Ātman é a imagem de Brahman. A diversidade de formas e seres é simplesmente uma manifestação dessa unidade essencial, que, em sua própria dimensão, é indivisível e única.
Assim, Purusha é a consciência universal que se reflete em cada ser individualmente, e ao mesmo tempo, é a consciência compartilhada que une todos os seres na totalidade cósmica. A distinção entre Purusha individual e Purusha universal desaparece à medida que a consciência se expande e transcende a dualidade, revelando a unidade subjacente de toda a existência.
A concepção mais precisa de Purusha pode ser entendida como o "observador", o Ser eterno que testemunha os fenômenos da Prakṛti sem se identificar com eles. Ele permanece imparcial, inalterado e transcendental, independentemente das flutuações da mente ou das experiências emocionais.
Por sua vez, Prakṛti é a origem de tudo o que percebemos no mundo manifestado: desde nosso corpo físico, o ego e os pensamentos até as emoções e instintos. Ela é a essência que gera e condiciona a experiência material.
Uma analogia esclarecedora para entender a relação entre Purusha e Prakṛti é a do espectador em um teatro ou cinema. O espectador assiste atentamente à peça ou ao filme, imerso na história, e pode, momentaneamente, esquecer-se de sua posição como observador, identificando-se com os personagens e a trama que se desenrola diante de si.
No entanto, assim como o espectador não se confunde com os atores ou com a narrativa em si, Purusha é o "observador" que nunca se mistura com os fenômenos que observa. Ele testemunha tudo, mas não se identifica com as experiências e mudanças de Prakṛti, a natureza ou matéria. Purusha mantém sua posição como a consciência pura e imutável, enquanto Prakṛti representa a totalidade da criação, os fenômenos materiais e as manifestações.
Já o ego (Ahamkāra), em contraste, é como um ator que se identifica com o papel que desempenha, se fundindo temporariamente com a narrativa. O ego se envolve e se identifica com a trama da vida, confundindo-se com as emoções, os pensamentos e os acontecimentos.
Esse processo de identificação errônea é o que cria o sofrimento, pois nos esquecemos de nossa verdadeira natureza e caímos na ilusão da separatividade.
No sistema Sāṃkhya, o sofrimento não é causado por um "pecado cósmico" ou por uma falha intrínseca do universo, mas sim pela ignorância (avidyā) e pela ilusão (māyā) geradas pela identificação do ego com os fenômenos temporários. Purusha, por sua natureza, nunca sofre, pois ele é eterno, impassível e sempre consciente da verdadeira realidade.
Ao compreender que Purusha é o simples observador e que não se mistura com os eventos do mundo material, o indivíduo pode alcançar a moksha (liberação). A verdadeira liberação surge da realização de que somos Purusha — a consciência pura e universal — e não os fenômenos temporários com os quais nos identificamos. Esse conhecimento profundo da nossa verdadeira natureza, livre das ilusões do ego, é o caminho para a transcendência e para a superação do ciclo de nascimento, morte e renascimento (samsāra).
De acordo com a metafísica do Yoga e da tradição Sāṃkhya, a natureza, em todos os seus aspectos, é essencialmente não senciente. Somente o "Si Mesmo" transcendental, o Purusha, possui Consciência. Enquanto o "Si Mesmo" é eternamente imutável, sendo uma pura testemunha (Sākshin), a natureza, por sua própria essência, está em constante movimento e transformação.
Essa dinâmica de movimento é impulsionada pela interação dos três componentes fundamentais da natureza, conhecidos como os gunas: sattva, rajas e tamas. Esses três princípios governam toda a manifestação cósmica e são considerados as qualidades que permeiam e moldam toda a existência.
Sattva é a qualidade da estabilidade, pureza, iluminação e despertar.
Rajas é a qualidade do movimento dinâmico, da ação e da mudança.
Tamas representa a inércia, a escuridão, a ignorância e a energia potencial.
Esses três gunas formam a base da matéria e da energia, governando os diferentes aspectos da criação. A alternância entre essas qualidades é o que garante o movimento constante e a evolução da manifestação cósmica. Sem esse movimento, a evolução seria impossível, já que a imobilidade absoluta implica na ausência de mudança. Assim, o universo está sempre em evolução, desde o nível subatômico até os maiores sistemas solares.
A única exceção a essa necessidade de movimento é o que não necessita evoluir: o Divino, em sua essência imanifestada, o Parabrahman. Para manifestar-se como um universo, o Parabrahman assume a forma de Brahman, que é Deus em relação ao universo manifestado.
Aqui, vemos uma combinação dos conceitos do Vedānta (Ātman, Brahman), da Sāṃkhya e do Yoga (Purusha e Prakṛti), que se entrelaçam naquilo que é conhecido como a "Doutrina Secreta dos Iniciados" e vemos em “A Doutrina Secreta” de Blavatsky.
Aqui, nesta imagem temos os principais conceitos do Sāṃkhya reunidos:

Purusha é a essência sem forma, além dos atributos, causa e efeito, espaço e tempo, e pode ser comparado ao conceito de Brahman no Vedānta, sendo a Existência Pura. Em contraste, Prakṛti é a força criativa da ação, a fonte de todas as formas, manifestações, atributos e da própria natureza. A partir de Prakṛti surge Mahad, a Inteligência Cósmica ou Buddhi, que se manifesta como a capacidade de discernimento. O Ahamkāra, por sua vez, representa o ego, a noção de individualidade e separação. As três Gunas — sattva, rajas e tamas — são as qualidades fundamentais da matéria que governam toda a manifestação do universo, influenciando os processos cósmicos e a evolução da criação e dão origem aos elementos da natureza em suas múltiplas manifestações.
Na cosmogênese apresentada em A Doutrina Secreta de Blavatsky, os conceitos das diversas escolas filosóficas do Hinduísmo, os Dārśanas, se entrelaçam para oferecer uma explicação esotérica e integrada sobre a origem do universo. Além dos fundamentos das escolas filosóficas Vedānta e Sāṃkhya, com seus termos em sânscrito, Blavatsky também faz uso de uma combinação de termos tibetanos e chineses em suas obras. Isso se deve ao fato de que o Livro de Dzyan — uma das fontes essenciais de sua filosofia — apresenta uma fusão dessas tradições, algo característico do budismo esotérico. Esse uso de terminologias variadas é um dos aspectos que torna sua obra desafiadora para muitos estudiosos ocidentais, que frequentemente encontram dificuldades para integrar esses diferentes sistemas filosóficos e linguísticos.
Esta doutrina secreta, com seu caráter profundamente unificador, busca harmonizar aparentes contradições, oferecendo uma visão holística e abrangente da criação. A partir deste ponto, após as explicações preliminares, passaremos a nos referir a esses termos como uma unidade indissociável, compreendendo-os como partes de um todo maior e mais profundo.
Logo nas primeiras páginas da obra, Blavatsky propõe que o universo é constituído por dois elementos inseparáveis: a Ideação Cósmica e a Substância Primordial.
A Ideação Pré-Cósmica representa a raiz fundamental de toda a consciência individual, sendo a origem da consciência universal que permeia e sustenta toda a criação.
A Substância Primordial, conhecida por Blavatsky como Mūlaprakriti (onde "Mūla" significa "raiz", referindo-se à raiz ou origem da matéria), é descrita no livro do Gênesis como o "Caos primordial". Essa substância constitui o substrato essencial da matéria em seus diversos estágios de manifestação, sendo a base inmanifestada sobre a qual a criação se desenvolve e se organiza, desde o estado mais sutil até o mais denso.
Uma é ativa e positiva, enquanto a outra é passiva e negativa.
A natureza, portanto, pode ser vista como uma organização hierárquica composta por múltiplos níveis, que vão desde o domínio visível — constituído pelos cinco elementos — até o fundamento transcendente, o pradhana ou a "natureza raiz" (Mūla-Prakriti).
A dimensão visível é considerada "densa" (sthūla), enquanto as outras dimensões ocultas são chamadas de "sutis" (sūkṣma).
Para se manifestar através de um universo, o imanifestado Parabrahman assume a forma de Brahman, isto é, Deus em relação ao Universo manifestado. Como a manifestação exige movimento, Brahman se divide em dois aspectos de Si mesmo, permitindo a criação do movimento. Em outras palavras, Deus cria e projeta dois modos de ser opostos, mas complementares:
A Energia: capaz de se movimentar, gerando ação e transformação.
O Espaço: capaz de, por sua imobilidade, permitir a existência do movimento relativo.
É evidente que, se o espaço também se movimentasse, juntamente com a energia, não haveria movimento propriamente dito, mas sim uma total imobilidade, pois não haveria algo estático para servir de referência para caracterizar o movimento.
Na filosofia teosófica, a Energia é chamada de Fóhat (em tibetano: "vida cósmica" ou "vitalidade"), enquanto o Espaço é denominado Kóilon.
Fóhat é a essência da eletricidade cósmica, entendendo "eletricidade" não como um fenômeno físico, mas como um atributo da consciência universal. No mundo manifestado, Fóhat representa a força vital oculta que, sob a direção da vontade do Logos criador, une todas as formas, dando-lhes o impulso inicial para a existência. Ele é a força que transforma o Uno em diversos, agregando e combinando os átomos. Na constituição humana, Fóhat corresponde aos prāṇas, as forças vitais que sustentam a vida.
Esotericamente, no Hinduísmo, Fóhat é associado a Viṣṇu, o deus que mantém o Universo; na mitologia grega, é relacionado a Eros, o deus do amor e da atração universal; e na mitologia egípcia, Fóhat é vinculado a Atum, o deus criador que emerge do caos primordial.
Fóhat é uma força primordial essencial na criação e formação do cosmos. Durante os períodos de inatividade do universo, conhecidos como Mahāpralaya, quando o cosmos ainda não se manifesta no plano objetivo, Fóhat permanece latente, coeterno com Parabrahman e Mūlaprakṛti (Energia e Matéria sem diferenciação no Absoluto). Nesse estado, Fóhat é a força que, embora oculta, sustenta o potencial de toda a criação.
Quando a manifestação se inicia, Fóhat se revela como o princípio aglutinador, a força que unifica e, ao mesmo tempo, separa, funcionando como o "desejo criador" que impulsiona a concretização do universo. É descrita como o "incessante poder formador e destruidor", uma energia dinâmica que tanto cria quanto destrói, mantendo o equilíbrio cósmico.
No início da atividade cósmica, Fóhat se torna o raio divino da criação, aplicando a Ideação Cósmica sobre a Substância Primordial, fecundando-a e iniciando assim o processo de manifestação. Através de Fóhat, a Ideação Cósmica se plasma na matéria, dando origem a todos os níveis da criação, desde os mais sutis até os mais densos.
É como se o potencial do Absoluto (Brahman) se concentrasse em um ponto único (Brahmā), gerando um espaço ao seu redor. Esse ponto, ao se manifestar, se transforma em um raio de luz (Fóhat) que fecunda o espaço criado, dando início ao processo de manifestação cósmica. Dessa forma, a energia pura e ilimitada do Brahman começa a se organizar e a se concretizar, originando a criação a partir de um ponto central, que, por sua vez, expande e diversifica o universo em múltiplas formas e dimensões.
Blavatsky descreve essa cosmogênese como uma "fertilização imaculada" da Natureza Primordial pelo Espírito Universal, ilustrando geometramente com um ponto inscrito em um círculo, simbolizando a década pitagórica. O ponto representa o "1" e o círculo o "0", revelando a origem da criação como a fusão entre o potencial (o vazio) e a ação (o movimento).
"O Uno é um círculo não interrompido (anel) e sem circunferência, porque não está em parte alguma e está em toda a parte; o Uno é o plano sem limites do círculo, que manifesta um diâmetro somente durante os períodos manvantáricos; o Uno é o ponto indivisível, que não está situado em parte alguma, e percebido em toda parte durante aqueles períodos."
(A Doutrina Secreta)
Kóilon (ou Koilon) é um termo derivado do grego antigo, com o significado de "cavidade", "espaço vazio" ou "recipiente". No contexto esotérico e teosófico, o termo Kóilon é frequentemente usado para descrever um tipo de "vaso" ou "cavidade cósmica" que serve como um recipiente ou espaço para o movimento de forças espirituais e energias criativas, especialmente no processo de manifestação do cosmos.
Kóilon é uma forma de se referir à Substância Primordial mais sutil, sendo um conceito que se distingue de Mūlaprakriti (a "Raiz da Matéria"). Embora as diferenças entre Mūlaprakriti e Kóilon sejam sutis, é importante compreender que Kóilon surge a partir de Mūlaprakriti e, a partir desse nascimento, torna-se a base para a formação da Matéria Cósmica (ou Prākrti).
Kóilon também é relacionado ao conceito de potencialidade ou caos primordial — um espaço vazio e potencial, pronto para ser preenchido pela criação, ou seja, o espaço onde a substância primordial (como o Prakriti ou Akasha) pode tomar forma. Ele é o lugar "não manifestado" onde o processo criativo começa, embora não tenha ainda uma forma definida.
Kóilon pode ser visto como o local onde a força criadora, como a de Fóhat, começa a atuar, tornando-se um campo no qual as ideias ou arquétipos cósmicos podem ser projetados para formar o universo material e espiritual.
Na Teosofia, o conceito de Kóilon é utilizado para explicar a formação dos Átomos Primordiais, também conhecidos como Átomos Ultérrimos. Esses átomos não são entidades sólidas, mas sim "bolhas" formadas pela própria energia criadora, Fóhat. Quando Fóhat emerge, cria essas bolhas, cavidades (Kóilon) de energia que se agrupam e se organizam em espirais, formando os protótipos dos primeiros átomos. A formação do Átomo Ultérrimo será discutida mais adiante.
Na teologia ocidental, Fóhat pode ser comparado ao Espírito Santo, enquanto Kóilon é visto como a "Virgem Maria Cósmica", o ventre cósmico no qual todas as formas e mundos são gerados. O interessante é que o espaço não é maculado pelo aparecimento da matéria dentro dele. Após a retirada da matéria, o espaço permanece imutável, em seu estado virginal.
Quando Brahman se polariza no início da manifestação, Ele se divide em dois aspectos complementares: Fóhat e Kóilon. Esses dois princípios, que podem ser vistos como manifestações iniciais de Sua essência, se assemelham à figura de Brahmā, o Deus Criador. Após essa polarização, Fóhat e Kóilon se fundem novamente, gerando a Prākrti, ou Matéria Cósmica. É importante entender, no entanto, que Prākrti, a matéria habitada por Brahman, não é o próprio Brahman em uma forma diferente, mas sim uma projeção de Sua natureza.
A aparente contradição surge porque, à primeira vista, poderia parecer que, ao se dividir e depois se reunir, Brahman deveria retornar à sua forma original. No entanto, isso não se aplica ao "Grande Espírito Uno", o Infinito e Onipresente. Brahman, ao manifestar-se como matéria, não retorna ao seu estado primordial, mas projeta a matéria cósmica através de Fóhat e Kóilon, dando origem a Prākrti, que é uma manifestação de Sua essência, mas não a totalidade do Ser Divino.
Neste novo estágio da manifestação, o espírito que habita Prākrti recebe o nome de Purusha ou Ātman. A matéria, por sua vez, continua sendo a projeção de Brahman, enquanto Purusha, o espírito, mantém a essência divina em sua totalidade, mas agora se manifesta dentro da matéria.
Quando Brahman (ou Ātman universal) se polariza em Fóhat, ele se corporifica na matéria (Prākrti), dando origem a uma manifestação múltipla e gerando muitos Ātman e muitos Purushas. Assim, Brahman, ao mesmo tempo, é o Uno e o Muitos, pois, ao se dividir em diversas formas, ele continua sendo a unidade subjacente que as une. A matéria (Prākrti) e o espírito (Purusha) tornam-se inseparáveis, realizando a eterna dualidade universal — espírito e matéria. No entanto, quando falamos de Prākrti, estamos nos referindo à matéria em suas formas mais sutis e densas, com o foco neste momento específico na sua expressão mais sutil.
Purusha está presente em tudo, desde o átomo até os sistemas solares. Ele busca organizar formas de vida cada vez mais complexas e perfeitas, com o objetivo de revelar sua plenitude. Purusha é o impulso que move todas as formas de vida a evoluir, desenvolvendo maior sensibilidade para refletir essa essência divina e permitir que sua expressão se manifeste de maneira mais clara e profunda.
Blavatsky descreve o processo de manifestação como uma série de planos ou níveis de existência, diferentes modificações de Prākrti, que vão desde o plano mais sutil até o mais denso. Esses planos formam o que ela chama de "cadeia de mundos", uma rede de dimensões interconectadas e interdependentes, coexistindo simultaneamente. Cada plano da cadeia é uma expressão do princípio único, Brahman, que, ao se manifestar, cria a diversidade das formas, mas sem jamais perder a unidade essencial que está na base de todas as coisas.
Assim, o "Princípio Uno" se manifesta progressivamente em planos cada vez mais densos, fecundando a si mesmo e formando diversas camadas de existência, até se materializar no plano físico que percebemos.
Os Purushas, raios emanados do Uno, iniciam sua jornada evolutiva na "roda dos mundos", começando nos reinos minerais, ainda em formas atômicas. Gradualmente, esses raios de Purusha ganham complexidade à medida que ascendem pelos reinos vegetais e animais, até alcançar o estágio humano.
Até atingir o estágio humano, o ser desenvolve seu quaternário inferior, composto pelos corpos físico, etérico, astral e mental. Ao longo de suas encarnações, o ser se vê condicionado pelas limitações desses corpos e, gradualmente, esquece sua verdadeira natureza divina, o Ātman, seu ser interno e imortal. No entanto, por meio do livre-arbítrio e dos esforços pessoais, o ser humano tem a oportunidade de aperfeiçoar esses corpos, criando, assim, o veículo da alma humana — o Manas — que se forma pela Vontade, o princípio essencial para a união com a alma divina, a consciência superior, o Buddhi.
A realização plena desse processo culmina com a encarnação do Ātman — o Ser imortal que traz consigo a revelação da verdadeira natureza do ser. Nesse estado, o Ātman se revela como uma expressão direta do Mahā-Ātman, o Brahman, a Fonte última de toda a existência. A partir desse ponto, inicia-se uma jornada ainda mais transcendental, na qual o ser humano ascende a níveis superiores de consciência e evolução, aproximando-se cada vez mais da totalidade do Todo.
E assim chegamos ao terceiro postulado:
- A identidade de todas os Seres (Purusha, Ātman) com o "Ser Universal" (Purusha, Brahman, Brahma, Mahā-Ātman), sendo este último um aspecto da Raiz Desconhecida (Mūlaprakriti).
Essa busca pelo autoconhecimento é uma expressão da própria divindade, que, ao explorar a realidade de si mesma, busca despertar sua consciência e experimentar sua essência mais profunda, cheia de alegria, êxtase e prazer. Por meio dessa jornada, a divindade se expande, conhecendo-se de maneira mais profunda e tornando-se plenamente consciente de sua natureza divina e infinita. Assim, ao se perceber em sua totalidade, a divindade realiza sua própria perfeição, expressando-se em todas as formas e experiências do universo.
Na Trilha dos Mistérios
Pela Santa Ciência!
Fontes:
Helena Petrovna Blavatsky - A Doutrina Secreta
Georg Feuerstein - Enciclopédia de Yoga
Georg Feuerstein - A Tradição do Yoga
Caio Miranda - A Libertação pelo Yoga
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