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A História Cultural da Índia através de suas Sagradas Escrituras

Atualizado: 14 de nov. de 2024


Vamos explorar a fascinante e profunda história cultural da Índia por meio de suas sagradas escrituras, estabelecendo as bases para os temas que abordaremos ao longo dessa jornada. Dentre esses temas, destacaremos o estudo das Escolas Filosóficas da Índia, conhecidas como Darśanas (ou Dárshanas), que representam diferentes perspectivas interpretativas das escrituras hindus e que nos conduzirão ao nosso tema central: a Cosmogênese segundo Helena Blavatsky.

 

É importante destacar que Blavatsky utiliza uma terminologia derivada dessas tradições filosóficas indianas, o que pode, por vezes, gerar confusão ao tentarmos conciliar seus conceitos e termos. A obra A Doutrina Secreta — tanto o livro de Blavatsky quanto a ideia mais ampla da "doutrina secreta" (gupta vidya) dos iniciados — sintetiza esses conhecimentos e representa uma visão holística dos mistérios universais. Ao longo de nosso estudo, à medida que aprofundarmos nosso entendimento, seremos mais aptos a desvelar não apenas os segredos contidos nessa obra, mas também outros mistérios que permeiam a tradição esotérica.

 

Vale ressaltar que o estudo das escrituras hindus e das escolas filosóficas que as interpretam tem grande relevância, não apenas para os interessados no ocultismo e na Teosofia, mas também para todos aqueles que se dedicam a práticas como as do Yoga, do Vedānta, do Ayurveda, entre outras.

 

Vamos, então, iniciar o tema deste vídeo: A História Cultural da Índia através de suas Sagradas Escrituras.


O Hinduísmo é uma das tradições espirituais mais antigas e complexas do mundo, originada na Índia e com um impacto profundo em diversas culturas ao redor do planeta. Com mais de um bilhão de seguidores, o Hinduísmo se caracteriza por sua diversidade e não possui um fundador único, um único texto sagrado ou uma autoridade central. Ao invés disso, ele é composto por uma multiplicidade de crenças e práticas espirituais que evoluíram ao longo de milênios.


Entre as crenças fundamentais do Hinduísmo estão a reencarnação (saṃsāra) e o karma, a lei de causa e efeito, que explicam o ciclo de nascimento, morte e renascimento. Sua mitologia é rica e inclui uma vasta gama de deuses e deusas, como Brahmā (Brahma, o criador), Viṣṇu (Vishnu, o preservador), Śiva (Shiva, o destruidor) e Gaṇeśa (Ganesha, o removedor de obstáculos), cada um representando diferentes aspectos da divindade e da vida humana.


Os Vedas, as Upaniṣads (ou Upanishads, Upanixade e etc.)e a Bhagavad Gītā são alguns dos principais textos sagrados, que contêm a sabedoria espiritual que orienta os praticantes em sua jornada de autoconhecimento e iluminação. O Hinduísmo também valoriza profundamente a busca pela verdade e a liberdade de pensamento, permitindo que os seguidores escolham sua própria abordagem espiritual, seja através da devoção, do conhecimento ou da meditação.


Com sua natureza pluralista, o Hinduísmo é uma religião complexa e regionalmente diversa, refletindo as múltiplas influências culturais do subcontinente indiano. Ele se insere dentro de uma tapeçaria espiritual mais ampla, coexistindo com outras tradições religiosas, como o Budaísmo, o Jainismo e o Siquismo, todas originárias da Índia.


O termo "Hinduísmo", no entanto, pode ter diferentes conotações. Em um sentido mais amplo, refere-se à cultura e às práticas espirituais de todos os habitantes da Índia que não seguem religiões claramente definidas como o Budismo, o Islã ou o Cristianismo. De uma perspectiva mais específica, o termo designa as várias tradições religiosas que possuem uma conexão histórica e ideológica com a antiga cultura védica, com raízes que remontam a mais de seis mil anos, e que assumiram suas formas características durante os primeiros séculos de nossa era.


No contexto do Hinduísmo, a religião transcende a mera prática espiritual, sendo, na verdade, uma cultura com um estilo de vida próprio. Uma de suas características mais marcantes é o sistema de castas, uma estrutura social complexa e profundamente enraizada na tradição hindu.


Esse sistema divide a sociedade em quatro grandes categorias: brāhmaṇas (sacerdotes e estudiosos), kṣatriyas (guerreiros e governantes), vaiśhyas (agricultores, comerciantes e artesãos) e śūdras (servos e trabalhadores). Essa organização hierárquica, sustentada por normas e convenções sociais, resultou na marginalização de um grupo ainda mais afastado, os "intocáveis" (ou Dalits), que estavam além dos limites das castas tradicionais.


Apesar de ter sido desafiado por movimentos sociais ao longo da história, como o Buddhismo (Budismo) do Buddha (Buda) Gautama e o movimento de reforma social liderado por figuras como Dr. B. R. Ambedkar, o sistema de castas ainda exerce uma influência considerável na sociedade indiana contemporânea. Embora este sistema possa parecer chocante à luz dos valores modernos ocidentais, ele não é único em sua natureza. Em outras culturas, como a monarquia inglesa, também encontramos hierarquias sociais bem definidas, com classes de nobreza, como duques e lordes, que, de certa forma, refletem a ideia de uma estrutura social estratificada, embora com diferentes funções e contextos históricos.


Apesar de sistemas rígidos como o de castas, o Hinduísmo sempre foi marcado por uma impressionante capacidade de absorver e integrar diferentes perspectivas filosóficas e sociais, muitas vezes contrastantes entre si. De um lado, por exemplo, encontramos a filosofia do não-dualismo radical de Śaṅkara, que prega a unidade absoluta do Ser e a ilusão da dualidade entre sujeito e objeto. Do outro, temos o dualismo clássico do Sāṁkhya, uma das escolas mais antigas, que, apesar de seu ateísmo, é considerada uma das seis principais Dārśanas (sistemas filosóficos) do Hinduísmo. Essa diversidade de pensamentos reflete a flexibilidade ideológica do Hinduísmo.


Outro exemplo dessa flexibilidade pode ser visto na diversidade de abordagens espirituais dentro da tradição. Enquanto a filosofia Jnana-Yoga dos Upaniṣads enfatiza a meditação e o conhecimento direto da verdade, muitas escolas de Bhakti-Yoga (o caminho da devoção) envolvem práticas emocionais intensas e um amor devocional a uma divindade pessoal. O Bhakti-mārga da época medieval foi especialmente sincrético, incorporando, por exemplo, elementos do Sufismo muçulmano, criando uma inter-relação única entre o Hinduísmo e outras tradições espirituais.


Um exemplo notável do espírito englobante do Hinduísmo é a Allah-Upaniṣad, um texto tardio que reflete a influência muçulmana sobre a tradição hindu. Esta obra é um testemunho da notável capacidade do Hinduísmo de absorver e adaptar outras influências religiosas e culturais, o que evidencia seu caráter inclusivo e dinâmico.


A capacidade de assimilação do Hinduísmo é tão profunda que, até mesmo uma tradição religiosa tão distinta quanto o Cristianismo foi influenciada por ele. Nos séculos XVI e XVII, missionários jesuítas sentiram a necessidade de "resgatar" o Cristianismo da "hinduização" crescente, devido à forte interação cultural entre as tradições religiosas na Índia.


No entanto, essa tendência englobante do Hinduísmo é frequentemente equivocada como uma mera "tolerância universal". Isso é um erro. Embora o Hinduísmo seja, sem dúvida, flexível e capaz de integrar diferentes influências, a história da Índia também está repleta de intolerâncias internas, como a prolongada tensão entre as seitas Vaiṣṇavas (ou Vaishinavas, devotos de Viṣṇu, ou Vishnu) e Śaivas (ou Shaivas, devotos de Śiva, ou Shiva). Esses conflitos demonstram que, mesmo dentro da tradição hindu, a aceitação não é sempre garantida, e disputas sectárias e filosóficas também têm sido comuns.


Até recentemente, muitos estudiosos, tanto ocidentais quanto indianos, enfatizavam a descontinuidade cultural como o fator principal na evolução da civilização indiana. Acreditava-se, por exemplo, que houve um grande conflito entre as culturas do Vale do Indo e os invasores āryas que, supostamente, teriam originado a cultura védica ao entrarem na Índia. Essa teoria da invasão ārya dominou o pensamento acadêmico por muito tempo, mas tem sido amplamente questionada. Um número crescente de estudiosos, de ambos os lados do mundo, passou a rejeitar essa teoria como um mito científico, construído sem evidências sólidas, e que distorceu a compreensão da história e da cultura da antiga Índia. Essa mudança de paradigma é discutida no livro "Em Busca do Berço da Civilização", que desafia a visão tradicional e propõe uma compreensão mais integrada da evolução cultural do subcontinente indiano.


A riqueza cultural da Índia é claramente refletida em suas escrituras sagradas, que remontam a milênios de história. Os Vedas, uma coleção de textos escritos em sânscrito, são a espinha dorsal do Hinduísmo. Considerados as mais antigas escrituras dessa tradição, eles foram provavelmente compilados por volta de 2000 a.C. e transmitidos oralmente por várias gerações antes de serem finalmente registrados por escrito. Por sua transmissão auditiva, os Vedas são ainda mais antigos do que os primeiros registros escritos, e continuam a ser considerados a revelação divina primordial, abarcando hinos, rituais, práticas religiosas e ensinamentos filosóficos fundamentais para a sabedoria espiritual hindu.


Posteriormente, surgiram os Upaniṣads, textos filosóficos profundos que exploram questões existenciais essenciais, como o autoconhecimento, a natureza da realidade e a busca pela iluminação. Os Upaniṣads são, na verdade, parte dos Vedas, mas merecem destaque por seu enfoque mais introspectivo e místico. Datados desde 1900 a.C. ou antes, também são contemporâneos à tradição do Buddha, e representam uma das primeiras explorações da filosofia espiritual na história da humanidade.


Além dos Vedas e Upaniṣads, outros textos essenciais são os Purāṇas e os Épicos, como o Mahābhārata e o Rāmāyaṇa. Os Purāṇas são uma vasta coleção de mitos, lendas e ensinamentos morais, enquanto os épicos oferecem narrativas heroicas que não apenas contam histórias de deuses e heróis, mas também transmitem lições éticas, filosóficas e espirituais. Esses textos continuam a moldar profundamente a cultura e a sociedade hindu, sendo reverenciados e estudados até hoje.


Em resumo, as escrituras hindu formam um legado literário e espiritual que remonta a milênios. Desde os Vedas, considerados a mais antiga e fundamental revelação divina do Hinduísmo, até os Upaniṣads, Purāṇas e Épicos, essas escrituras proporcionam uma vasta e rica herança de sabedoria. Elas são o alicerce da filosofia hindu, abrangendo não apenas práticas religiosas, mas também uma profunda reflexão sobre a natureza do ser e do universo. A reverência a essas obras continua a ser um pilar da espiritualidade hindu até os dias de hoje.


A literatura sagrada hindu é dividida em duas categorias principais: as obras reveladas (Śruti ou Shruti) e as obras lembradas (Smṛti ou Smriti).


Obras Reveladas (śruti)


As obras reveladas (śruti) são consideradas a fonte primordial de sabedoria espiritual e revelação divina, sendo profundamente respeitadas dentro da tradição védica. Elas compreendem os quatro Vedas — Rig-Veda, Yajur-Veda, Sāma-Veda e Atharva-Veda — e seus respectivos textos rituais, que tratam de aspectos religiosos, filosóficos e espirituais. Cada Veda é composto por várias partes interligadas, abordando desde os hinos sagrados até as diretrizes práticas e filosóficas para a vida. Essas partes são:


  1. Samhitas: São a camada mais antiga dos Vedas, consistindo em mantras, hinos, orações e bênçãos que formam a base dos outros livros védicos. Os Samhitas são usados principalmente nas práticas religiosas e nos rituais, sendo um ponto de conexão direta com o divino. Eles são especialmente direcionados aos Brahmacharis (aqueles que estão na primeira fase da vida espiritual, dedicados ao estudo e aprendizado).


  2. Brāhmaṇas: Os Brāhmaṇas são textos que funcionam como comentários e instruções rituais, detalhando as funções e práticas sacerdotais associadas aos hinos dos Samhitas. Esses textos fornecem as explicações sobre o significado e o propósito dos rituais védicos, além de orientações para a realização adequada dos sacrifícios. São voltados especialmente aos Gṛhasthas, aqueles que estão na fase da vida doméstica e se dedicam às responsabilidades familiares. Historicamente, os Brāhmaṇas foram associados à classe sacerdotal dos Brāhmaṇas.


  3. Āraṇyakas: Os Āraṇyakas representam uma transição entre os Brāhmaṇas e os Upaniṣads. São textos filosóficos que oferecem uma reflexão sobre os rituais e sacrifícios, abordando a espiritualidade por trás dessas práticas. Os Āraṇyakas são muitas vezes associados a ascetas e eremitas que se retiram para as florestas em busca de realização espiritual, dedicando-se à meditação e ao distanciamento das preocupações mundanas.


  4. Upaniṣads: Os Upaniṣads são os textos mais filosóficos dos Vedas e marcam o ápice da reflexão mística e metafísica da tradição védica. Voltados para o estudo da natureza da realidade, da alma individual (Ātman) e do Brahman (a realidade última e universal), os Upaniṣads representam um aprofundamento no conhecimento espiritual, buscando compreender a conexão entre o ser humano e o cosmos. São textos fundamentais para a filosofia não-dualista do Hinduísmo e da tradição de Jñāna-Yoga.


Obras Lembradas (Smṛti)


As obras lembradas (Smṛti), por sua vez, são consideradas textos secundários em relação aos Vedas, mas de extrema importância para a formação da tradição hindu. Elas estão mais focadas em ensinamentos morais, tradições religiosas e práticas éticas que se desenvolveram ao longo do tempo, refletindo as preocupações cotidianas da sociedade hindu.


Entre as principais obras Smṛti, destacam-se:


  • Purāṇas: Coleções de mitos, lendas e histórias sagradas que exploram a criação do mundo, as histórias dos deuses e heróis, e a moralidade. São textos muito influentes, que abrangem tanto aspectos cosmogônicos quanto narrativas espirituais.


  • Épicos: Os Mahābhārata e o Rāmāyaṇa são as duas maiores epopeias do Hinduísmo, e contêm, além das narrativas heróicas, profundos ensinamentos éticos, filosóficos e espirituais. O Mahābhārata, por exemplo, inclui o famoso Bhagavad Gītā, um texto central na filosofia hindu, onde o deus Kṛṣṇa ensina Arjuna sobre os deveres morais, o Yoga e a natureza do ser.


  • Dharmāśāstras: Textos que fornecem diretrizes sobre o dharma (deveres e conduta ética), oferecendo normas de comportamento social, jurídico e religioso. O Manu Smṛti é o mais conhecido entre os Dharmāśāstras, fornecendo um código moral e legal para a sociedade hindu.


Vamos agora explorar o desenvolvimento dessas escrituras ao longo das diferentes eras da história antiga da Índia:


1. Era Pré-Védica (6500 - 4500 a.C.)


Escavações arqueológicas recentes no Baluquistão Oriental (atualmente no Paquistão) revelaram uma antiga cidade neolítica chamada Mehrgarh, datada de meados do sétimo milênio a.C. Estima-se que a cidade tenha abrigado uma população de cerca de 20.000 pessoas e funcionava como um próspero centro de comércio, importação e exportação de mercadorias. Mais do que um centro comercial, Mehrgarh também era um local de inovação tecnológica e desenvolvimento agrícola, com os habitantes cultivando algodão já no quinto milênio a.C. e produzindo cerâmica de alta qualidade no quarto milênio a.C.. Além disso, as estatuetas de terracota, datadas de cerca de 2600 a.C., exibem uma continuidade estilística com a arte das civilizações posteriores da região do Índus-Sarasvatī e com elementos que seriam incorporados mais tarde no Hinduísmo.


Este período é considerado crucial no desenvolvimento da cultura e espiritualidade que influenciaria o Hinduísmo posterior, estabelecendo as bases para práticas e crenças que seriam aprofundadas nas escrituras védicas.


2. Era Védica (4500 - 2500 a.C.)


Os hinos dos quatro Vedas, os textos fundamentais da tradição védica, foram compostos entre o quarto e o quinto milênio a.C., conforme indicam várias referências astronômicas presentes no Rig-Veda. A Era Védica é marcada pela formação e consolidação de uma tradição espiritual e filosófica que influenciaria toda a cultura e religião hindu por milênios.


O período védico teve seu fim mais tardio ligado ao esgotamento do rio Sarasvatī, um evento climático e tectônico significativo ocorrido por volta de 3100 a.C., que resultou no desaparecimento da civilização que florescia ao longo de suas margens. A arqueologia confirma que os vestígios da civilização do Indo não contradizem o universo cultural descrito nos hinos védicos, levando à conclusão de que as populações das cidades do Indo e os arianos védicos compartilhavam uma origem comum. Esse paralelo cultural fortalece a teoria de que os arianos, cujos hinos védicos são fundamentais para a tradição espiritual da Índia, eram de fato os descendentes das primeiras civilizações da região.


A matemática védica, com suas descobertas pioneiras, também exerceu uma grande influência sobre a matemática babilônica, sugerindo que os Vedas podem ter sido compostos por volta de 1800 a.C.. Esse período foi marcado por uma profunda produção intelectual que não só moldou o pensamento religioso, mas também forneceu as bases para diversas áreas do conhecimento, como a astronomia, a medicina e a matemática.


Embora o fim da Era Védica seja geralmente associado à grande guerra descrita no Mahābhārata, que muitos estudiosos situam em cerca de 3102 a.C., outras fontes sugerem uma data mais plausível para o término dessa era em torno de 1500 a.C., quando as principais escolas védicas começaram a se consolidar em sua forma mais conhecida.


4. Era Pós-Védica ou Upaniṣádica (1500 - 1000 a.C.)


Com o surgimento dos Upaniṣads, a tradição védica entrou em uma nova fase, marcada por uma abordagem mais metafísica e espiritual. Os Upaniṣads representam um aprofundamento do pensamento védico, explorando questões de autoconhecimento, realidade última e a relação entre o Ātman (alma individual) e o Brahman (realidade absoluta). Esses textos não só expandem o que já estava presente nos Vedas, mas também introduzem conceitos inovadores, como o sacrifício interior (antar-yajña), que enfatiza a renúncia ao mundo material e o cultivo da sabedoria interior como formas de alcançar a libertação (mokṣa).


Embora os Upaniṣads tragam uma abordagem mais filosófica e mística, não representam uma ruptura com o pensamento védico, mas sim uma continuação e explicitação das verdades implícitas nos hinos védicos. Eles marcam o terceiro estágio da revelação védica (śruti), sendo considerados os primeiros passos da tecnologia psicoespiritual da Índia — uma busca pela compreensão profunda da mente e da natureza da realidade.


Ao final dessa era, com o florescimento dos Upaniṣads, surgem novas tradições espirituais que desafiaram a visão védica ortodoxa. O Budismo e o Jainismo, ambos não-védicos, começam a ganhar destaque, oferecendo novos caminhos espirituais que se afastam das práticas védicas dominantes. Essa transição marca o fim da Era Pós-Védica e o início de um período de diversidade religiosa e filosófica na Índia, onde o diálogo entre as várias escolas de pensamento passa a ser central para a evolução das ideias espirituais da região.


5. Era Pré-Clássica ou Épica (1000 a.C. - 100 a.C.)


O período pré-clássico da Índia foi marcado por um florescimento do pensamento metafísico e ético, onde a complexidade das ideias religiosas e filosóficas se intensificou, criando um ambiente fértil para debates entre diferentes escolas de pensamento. Uma das características mais notáveis desse período foi a integração de diferentes caminhos espirituais, que buscavam harmonizar a renúncia ao mundo (sannyāsa) com a aceitação das obrigações sociais (dharma). Esse espírito integrador é visível na síntese de diversas correntes, como no Yoga e no Sāṃkhya, que se desenvolveram de maneira significativa durante essa época.


O exemplo mais destacado dessa fusão de ideias pode ser encontrado no Mahābhārata, que, embora tenha se consolidado como um épico completo durante este período, tem origens muito mais antigas, remontando aos primeiros relatos das guerras entre os Pāṇḍavas e os Kaurāvas. Dentro desse épico, encontramos o Bhagavad-Gītā, uma das obras mais importantes da literatura hindu, que, além de ser o texto mais completo sobre Yoga, também aborda questões éticas e filosóficas fundamentais para a tradição indiana. O Mahābhārata, portanto, pode ser visto como um marco da Era Épica, onde se entrelaçam mitologia, ética, filosofia e espiritualidade.


O Rāmāyaṇa, embora posterior ao Mahābhārata, também remonta a um período muito anterior em termos de seu núcleo histórico, que se relaciona com eventos que ocorreram cerca de trinta gerações antes da consolidação do Mahābhārata. Juntos, esses dois épicos representam a base literária e cultural da Índia antiga e ilustram o espírito de síntese e expansão religiosa e filosófica do período.


6. Era Clássica (100 a.C. - 500 d.C.)


A Era Clássica foi marcada por uma intensa disputa intelectual entre as seis escolas clássicas da filosofia hindu, que atingiram uma maturidade e sofisticação notáveis. Este período foi fundamental para o desenvolvimento do pensamento indiano, com a consolidação de sistemas filosóficos que ainda influenciam a tradição até hoje. Durante este período, foram compostos textos fundamentais como o Yoga-Sūtra de Patañjali e o Brahma-Sūtra de Bādarāyana, ambos em torno do século II a.C., seguidos pelo Sāṃkhya-Kārikā de Iśvara Kṛṣhṇa.


Ao mesmo tempo, o Budismo Mahāyāna se consolidava como uma das principais correntes dentro do budismo, levando a um diálogo contínuo e muitas vezes conflituoso entre hindus e budistas. O fim da Era Clássica coincide com o declínio da Dinastia Gupta, com a morte de seu último grande governante, Skandagupta, por volta de 455 d.C..


O período da dinastia Gupta, que começou em 320 d.C., foi um auge para a arte, ciência e cultura indiana, com destaque para o desenvolvimento das matemáticas e da astronomia. Apesar de seus governantes serem ardentes devotos do Vaiṣhṇavismo, eles praticaram uma política de tolerância religiosa, o que permitiu a convivência pacífica de várias tradições religiosas, incluindo o Budismo, que continuou a florescer. Esse ambiente de pluralismo religioso e cultural teve uma grande influência sobre o desenvolvimento cultural e intelectual da Índia e deixou uma marca duradoura na sociedade.


O famoso peregrino chinês Fā-Hièn, que visitou a Índia durante esse período, descreveu com entusiasmo as cidades prósperas, as instituições de caridade e as hospedarias ao longo das estradas, refletindo a riqueza espiritual e material da Índia durante o auge da Dinastia Gupta.


7. Era Tântrica / Purânica (500 - 1300 d.C.)


Durante o primeiro milênio d.C., ou até mesmo um pouco antes, a Índia foi palco de uma grande revolução cultural: o surgimento e a expansão do Tantra, também conhecido como Tantrismo. O Tantra representa um notável esforço de síntese filosófica e espiritual, resultado de séculos de integração de diversas escolas de pensamento que coexistiam no subcontinente. O Tantra pode ser visto como uma síntese das ideias metafísicas mais elevadas com as crenças e práticas populares, muitas vezes associadas às tradições rurais e locais. Ele surgiu como uma forma de espiritualidade radicalmente inclusiva, que se apresentava como o “evangelho” da kali-yuga, a era das trevas, de acordo com a visão hindu cíclica do tempo.


Por volta da virada do milênio, as doutrinas tântricas já estavam profundamente enraizadas na Índia, influenciando não apenas o Hinduísmo, mas também o Budismo e o Jainismo. O Tantra, embora tenha continuado o processo de síntese espiritual que caracteriza a história da Índia, também representou uma autêntica inovação. Embora não tenha introduzido novos conceitos filosóficos significativos, o Tantra teve uma grande importância nas práticas espirituais. Ele propôs um estilo de vida espiritual que se opunha radicalmente a muitos dos princípios tradicionais do Hinduísmo, Budismo e Jainismo. Um de seus legados mais profundos foi a valorização do princípio psico-cósmico feminino, denominado śakti (ou Shakti), que já estava presente, mas de forma mais oculta, em cultos dedicados a divindades femininas nas tradições locais.


Esse período também pode ser chamado de Era Purânica, uma vez que é durante essa época que as grandes compilações enciclopédicas, conhecidas como Purāṇas, foram sistematizadas. Embora os Purāṇas contenham uma base de tradições mais antigas, originárias da era védica, eles deram forma e coesão a uma história sagrada universalmente aceita, integrando conhecimentos filosóficos, mitológicos e rituais. Muitas dessas obras refletem uma profunda influência do Tantra e, portanto, também contêm informações valiosas sobre as práticas espirituais do Yoga.


8. Era Sectária (1300 - 1700 d.C.)


A redescoberta do princípio feminino no Tantra, tanto em sua filosofia quanto em suas práticas, abriu novos horizontes para a história cultural da Índia, especialmente com o surgimento do movimento bhakti. O movimento bhakti de devoção religiosa culminou na formação das grandes comunidades sectárias monoteístas, como os Vaiṣhṇavas e os Shaivas, que deram início à Era Sectária.


Durante essa era, a dimensão emocional da espiritualidade foi profundamente integrada, principalmente no contexto do bhakti-mārga, a via da devoção. Esse movimento de devoção completou uma importante síntese no panorama espiritual indiano, que havia começado na Era Pré-Clássica e Épica. O bhakti trouxe uma nova dimensão ao processo psicoespiritual, focando na relação direta e emocional do devoto com o divino, estabelecendo um vínculo pessoal e afetivo com a divindade. Essa transformação teve um impacto profundo na espiritualidade hindu e consolidou-se como um dos pilares da religiosidade indiana até os dias atuais.

9. Era Moderna (1700 - Época Atual)


O sincretismo resultante do movimento bhakti na Índia foi seguido pelo colapso do Império Mogol no século XVII, e pela crescente presença política europeia no subcontinente. Isso culminou na declaração de Rainha Vitória como Imperatriz da Índia em 1876, marcando um período de domínio colonial britânico. A introdução do sistema educacional ocidental e da tecnologia moderna provocou a progressiva destruição dos valores tradicionais da Índia. No entanto, ao lado desse processo de modernização, surgiu também um renascimento espiritual, com a disseminação da sabedoria hindu, especialmente os ensinamentos sobre Yoga e Vedanta, para o Ocidente. Este movimento foi intensificado após o famoso discurso de Swami Vivekananda no Parlamento das Religiões em Chicago, em 1893.


Como o psicólogo Carl Gustav Jung observou, enquanto o Ocidente estava dominando o Oriente externamente, o Oriente estava influenciando o Ocidente internamente. O renascimento da tradição hindu e suas implicações, como a crença de que o asceta pode transformar o próprio destino e o destino dos outros, são temas recorrentes. Esse princípio é afirmado no Ātharva-Veda (11.5-19), que sugere que até mesmo os deuses alcançaram a imortalidade através da castidade e da ascese.


A prática de Tapas está profundamente associada ao desenvolvimento de poderes paranormais e foi vista como uma prática mágica nas Erass Védica e Épica. Os ascetas, conhecidos como tapasvins ou tapasis, eram considerados poderosos magos capazes de combater maus espíritos e divindades hostis. No entanto, ao longo do tempo, o Yoga espiritualizou essa prática, direcionando-a para a autotranscendência, em vez de buscar habilidades mágicas. A castidade, por sua vez, passou a ser vista como um pré-requisito essencial na prática do Yoga. Vale ressaltar que, aqui, a castidade não se refere apenas à abstinência sexual, mas ao uso adequado da energia vital (prāṇa) para preservar e despertar a Kundalinī.


A tradição de Tapas ainda persiste na Índia moderna, com relatos de ascetas tapasvins, como o Tapasviji Maharaj, que são conhecidos por sua resistência física extraordinária e longevidade. Em certo sentido, a medicina ocidental tem muito a aprender com esses tapasvins, que praticam técnicas de auto-disciplina e controle da mente e do corpo. Essa abordagem de vida tem implicações significativas para o entendimento de saúde e bem-estar.


O Tapas pode ser entendido como uma forma de espiritualidade que se alinha mais com práticas associadas à magia e ao xamanismo, enfatizando a aquisição de força interior, visões espirituais e poderes mágicos. Em contraste, o Yoga é mais voltado para a autotranscendência, buscando estados de êxtase espiritual e união com a Realidade Suprema (Brahman). Ao longo da história, o Tapas e o Yoga coexistiram e, em muitos casos, se influenciaram mutuamente. Muitos praticantes de Yoga, especialmente aqueles em busca de realização espiritual profunda, integraram aspectos do Tapas, como a disciplina rigorosa e a concentração mental, o que resultou na imagem do yogin ou yogini como ascetas que combinam práticas místicas e taumaturgas.


Quando visto de forma mais restrita, o Tapas é um dos niyamas (observâncias pessoais) descritos nos Yoga Sutras de Patañjali. Nesse contexto, o conceito de Tapas está intimamente relacionado à disciplina, ao autocontrole e à força de vontade necessários para o desenvolvimento espiritual, sendo um elemento essencial para o progresso na prática do Yoga.


A visão de um sincretismo entre o Yoga e o Tapas se alinha com a forma como essas tradições são frequentemente interpretadas no Ocidente, muitas vezes envoltas em mistério. Esse entendimento integrador é encontrado em obras como a "Doutrina Secreta" de Helena Blavatsky e em várias escolas esotéricas e de mistérios ocidentais que surgiram posteriormente. Um exemplo notável disso são as escolas como a Rosa Cruz de Krumm-Heller e a Golden Dawn, que utilizaram práticas como mantras, meditação, e conhecimento sobre tattwas e tan-mātras (elementos e sensações cósmicas), inspirando muitos sistemas espirituais contemporâneos.


No entanto, antes de explorarmos o sincretismo moderno da Nova Era, é fundamental que tenhamos uma compreensão de cada uma dessas tradições e práticas em seu contexto original. Isso não só nos proporciona uma visão mais profunda, mas também nos capacita a adotar uma postura crítica na interpretação dos diversos temas que emergem dessa fusão de saberes espirituais. Além disso, essa compreensão nos ajuda a distinguir os termos equivalentes, mas não idênticos, que frequentemente geram confusão entre os estudantes, especialmente quando são apresentados na obra de Blavatsky.


Em breve, iremos explorar a Doutrina Secreta de Blavatsky, abordando temas como Cosmogênese e Antropogênese. Contudo, antes disso, dedicaremos um momento para aprofundar nosso entendimento das escolas filosóficas da Índia e suas distintas perspectivas, conhecidas como Dārśanas.


Na Trilha dos Mistérios


Pela Santa Ciência!


 
 
 

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